Sempre que me deparo com realidades discrepantes repito este mesmo comentário: “há muitos mundos dentro do nosso mundo.”
Recentemente duas experiências me deram mais uma grande demonstração disso.
A Faculdade Campo Real, aonde trabalho, colaborou (diga-se, de forma brilhante!) em um evento organizado por uma escola particular de nossa cidade. Tratava-se de uma feira de profissões, aonde cada curso expôs seus trabalhos, no intuito de incentivar os projetos de futuro dos alunos.
Um belo ginásio. Uma bela escola. Belíssimos alunos.
Eram crianças e adolescentes realmente privilegiados. Têm famílias que os apóiam e podem arcar com os custos de uma boa escola. Frequentam uma escola de qualidade, aonde professores, funcionários e direção aparentam realmente se importar e conhecer cada um deles.
Eram crianças e adolescentes bonitos, limpos, cheirosos, bem arrumados, coloridos e com muitas cores para escolher.
Eram crianças e adolescentes que têm planos, que sabem onde estarão no futuro, que conhecem os caminhos necessários para chegar aonde pretendem chegar e têm todos os meios para isso.
Eram crianças e adolescentes que são prioridade na vida de muita gente.
Um dia antes estive com um grupo de mulheres de um bairro, conversando sobre violência. No dia seguinte estive em uma das comunidades mais pobres de Guarapuava, são outros mundos.
Não foi a primeira (e certamente nem a última) vez que estive lá, mas voltei realmente pensativa.
Eu daria uma palestra para um grupo de pessoas, voluntárias, que se reuniriam para juntar o lixo das ruas ao seu redor. Quem lhes prometera os sacos de lixo, não apareceu. Ao chegar ao lugar aonde eu conversaria com eles, entendi porque a pessoa que me convidou achou tão estranho quando perguntei se poderia usar data show.
Não existe estrutura nenhuma. Só existe entulho.
A palestra acabou nem acontecendo.
A palestra acabou nem acontecendo.
Ruas, casas e pessoas, todos improvisados, todos remendados. Sem cor, desbotados.
Lixo é alguma coisa que a gente não quer por perto, algo sujo, mal cheiroso, que já não tem utilidade. (o que vi lá me fez lembrar muito do Ilha das Flores, que já citei aqui)
É interessante observar que o local em questão, evidentemente, não está perto, fica realmente isolado, há como que um vale vazio entre “eles” e “nós”, um espaço sem construções, sem casas, sem comércio, sem nada.
Eles aqui. Nós lá.
É angustiante imaginar o tamanho do esforço que uma criança de lá precisará fazer se quiser tornar a sua vida um pouquinho melhor do que tem sido até então. Tudo é mais difícil, tudo é árido, seco, pesado, tudo é longe.
Encontramos um grupo de meninos que pretendia se inscrever para um torneio de futebol que a (admirável) associação de moradores estava organizando. Procurando então pelo local aonde as pessoas estavam se mobilizando, perguntamos aonde ficava o campinho. Não havia campinho, não há praça, não há parque. Só um pedaço de terra batida, com traves improvisadas.
Aqueles, como quaisquer outros meninos, pelo menos por enquanto, só queriam se divertir jogando bola. Não encontrarão um campo.
Encontrarão sim vários bares espalhados por lá, com mesas de sinuca e jogos caça níqueis. E é impossível olhar para tais bares e não pensar em relatos de inquéritos policiais ou denúncias: “fulano de tal, vulgo fulano de tal, às 23h37min, no estabelecimento comercial denominado bar da ..., localizados na vila ..., com animus necandi...”
Não, não estou fazendo a relação direta entre miséria e criminalidade.
Estou sim fazendo a relação direta entre a total falta de perspectiva de vida e a criminalidade.
Sempre me angustio por pensar que os pequenos projetos sociais que propomos na faculdade não mudam em nada a vida das pessoas com quem entramos em contato.
Mas sempre me convenço novamente que qualquer pequeno movimento em direção a eles (acho horrível esta minha forma de expressar nossa distância, “eles e nós”, mas ela existe, eles estão em outro mundo), qualquer gesto que demonstre empatia, incentivo, carinho, pode ser a semente de um horizonte novo na vida de uma dessas crianças.
Uma tarde em contato com alunos de uma faculdade, dispostos a estar com eles e lhes levar algo novo, pode fazer muita diferença. Uma tarde dentro da faculdade, conhecendo seus prédios, auditório, cantina, recebendo o carinho de um presente de Natal, pode lhes fazer lembrar que há quem ainda se importe.
Por isso vale a pena insistir.
E o triste é que vejo ainda um terceiro mundo, que é o daqueles que poderiam fazer algo por tais pessoas e, ao contrário, aproveitam esta mesma oportunidade apenas em benefício próprio e em prejuízo de toda a coletividade.
Notícias de pessoas que têm a coragem de desviar dinheiro que pagaria merenda escolar para comprar ração de cachorro, isso sim dá nojo e não o lixo que sustenta a difícil vida de tantas pessoas tão iguais e tão diferentes de mim.
É contra isso que vale a pena ensinar.
Há quem goste de passear por cemitérios ou hospitais para lembrar de nossa finitude. Eu gostei de meu passeio de ontem.
Há quem goste de passear por cemitérios ou hospitais para lembrar de nossa finitude. Eu gostei de meu passeio de ontem.